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2012/01/12

Quem ganha dinheiro com o setor saúde

Quem ganha dinheiro com saúde

Os paradoxos de um setor que se expande como poucos, mas onde só alguns têm lucros

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O ocaso da Interclínicas, no início de dezembro, é o mais recente sintoma de uma grave crise que há pelo menos cinco anos acomete o setor privado de saúde no Brasil. Depois de reinar durante um bom tempo como a maior operadora de planos de saúde do país, a Interclínicas acabou com uma dívida acumulada em 100 milhões de reais. Sua carteira de 166 000 clientes foi vendida por cerca de 35 milhões de reais ao Grupo Saúde ABC, líder em sua área de atuação no ABC paulista. O caso da Interclínicas está longe de ser isolado. No ano passado, 34% das 2 200 empresas de planos de saúde do país tiveram prejuízo. De acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que regula as operadoras, 300 dessas empresas estão em dificuldades financeiras. "Na verdade, elas estão à beira da falência", afirma Herbert Gonçalves, diretor da área de negócios de saúde da consultoria Booz Allen Hamilton.

Como os planos médicos são um elo fundamental na cadeia da saúde, problemas nesse setor afetam todo o resto. "É um efeito em cascata", diz Gonçalves. Os planos de saúde geram 91% das receitas dos hospitais particulares e 95% do faturamento dos centros de diagnósticos. Os hospitais particulares têm, em média, seis meses de seu faturamento anual comprometidos com dívidas. As margens com que o setor vem trabalhando estão cada vez menores -- hoje estão em torno de 5,5% e são consideradas apertadíssimas pelos profissionais do setor. "Com esses ganhos é impossível fazer os investimentos obrigatórios em tecnologia, que são pesadíssimos na nossa área", afirma Francisco Balestrin, vice-presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados. Boa parte dos centros de diagnósticos por imagem existentes no país também está endividada. 
Nesse cenário inóspito, existem algumas ilhas de eficiência que, até agora, vêm conseguindo se manter saudáveis e em crescimento. Na área de planos de saúde, a Intermédica, com mais de 1,2 milhão de clientes, faturou 528 milhões de reais e lucrou 48 milhões em 2003. Com faturamento de 300 milhões de reais no ano passado, o laboratório Fleury colheu um lucro de 37,5 milhões de reais. A Sociedade Israelita Albert Einstein, dona do Hospital Albert Einstein, um dos melhores do país, teve receita de 481 milhões de reais e lucrou 76 milhões no ano passado. Todas essas empresas, de alguma forma, conseguiram escapar das principais armadilhas do sistema brasileiro de saúde privada.

Um ponto em comum em todas as organizações que vêm conseguindo bons resultados é a profissionalização de suas ad ministrações, assunto que só recentemente ganhou importância no setor de saúde no Brasil. "Normalmente, o melhor médico do hospital virava gestor", afirma Carlos Alberto Suslik, coordenador do curso de gestão da saúde do Ibmec São Paulo. "Quase sempre, perdia-se um grande médico e ganhava-se um péssimo administrador." Um dos exemplos de profissionalização nessa área é a Sociedade Israelita Albert Einstein. No início deste ano, a Sociedade completou seu processo de profissionalização. O engenheiro Gustavo Leite foi trazido da presidência da subsidiária brasileira da Monsanto como o principal executivo da Sociedade.

O Einstein vem seguindo o modelo de negócios apontado pelos hospitais de classe mundial -- o da especialização. "Com o desenvolvimento da medicina em diversos campos, ficou impossível fazer tudo e fazer tudo bem", diz Reynaldo Brandt, presidente do conselho do Albert Einstein. Os conselheiros e executivos do Einstein já definiram os quatro grandes campos de atuação em que o hospital deve se concentrar -- oncologia, cardiologia, neurologia e transplantes. Isso significa que, com o tempo, o hospital deixará de realizar procedimentos simples, como cirurgia de amígdalas. "Ao se concentrar em algumas poucas áreas, é possível aumentar a qualidade técnica e controlar melhor os custos", diz Brandt. Nos Estados Unidos, esse caminho já foi apontado por hospitais como o Mount Sinai, de Nova York, entre os mais conceituados no tratamento de câncer e transplantes. Atualmente, a estrutura do Mount Sinai reúne um hospital gigantesco, com 1 171 leitos, mais que o dobro do Einstein, e uma escola com mais de 400 alunos de medicina.
Retrato da crise
Desde a última década, o sistema privado de saúde brasileiro passa por uma crise sem precedentes. Eis algumas das dificuldades enfrentadas pelo setor
O número de usuários de planos de saúde diminuiu de
41 milhões, em 1998, para38 milhões, em 2004
A rentabilidade média das empresas de planos de saúde caiu de
8,4%, em 1995, para2,4%, em 2003
A dívida das clínicas e dos centros de diagnósticos por imagem com fornecedores de equipamentos é de cerca de
900 milhões de reais
Fontes: Federação Brasileira de Hospitais, Milliman Consultoria, Colégio Brasileiro de Radiologia

A especialização não elimina a possibilidade de crescer com diversificação -- desde que isso seja feito ao redor de seus campos originais de atuação. Uma das grandes apostas do Fleury é o hospital-dia que será inaugurado no primeiro semestre de 2005. Fruto de um investimento de 8 milhões de reais, o hospital-dia localizado em Higienópolis, na capital paulista, vai realizar pequenas cirurgias que não requerem internação, como vasectomias e implantes de prótese mamária. "Isso se encaixa na nossa estratégia como uma extensão natural da medicina diagnóstica, que, em alguns casos, permite a realização de procedimentos terapêuticos durante o próprio exame", afirma Marcos Ferraz, diretor do centro de diagnósticos do Fleury.

Outro movimento relevante que vem ocorrendo nesse setor é o de consolidação. O Centro de Medicina Diagnósticos da América (Dasa), dono das redes de laboratórios paulistas Delboni Auriemo e Lavoisier, é um símbolo dessa movimentação. O Dasa foi fundado em 1999, quando os centros de diagnósticos paulistas Delboni Auriemo e Lavoisier, que haviam se juntado naquele mesmo ano, receberam um aporte de capital de um fundo de investimentos. De lá para cá, o Dasa fez mais aquisições e fechou seu faturamento em 373 milhões de reais em 2003. "Percebi que sozinho não conseguiria dar conta dos investimentos necessários para permanecer nesse mercado", diz o médico Caio Auriemo, um dos fundadores do Delboni Auriemo. Quando iniciou o laboratório, no começo da década de 60, Auriemo pouco dependia de tecnologia. Hoje, uma máquina de ressonância magnética custa entre 1 milhão e 2 milhões de dólares. Em novembro deste ano, a empresa se tornou a primeira da área da saúde a lançar ações na Bolsa de Valores de São Paulo. Nos Estados Unidos, a consolidação está mais adiantada e atinge todo o setor. Nos últimos 15 anos, cerca de 1 000 hospitais americanos fecharam. No caso das operadoras de planos de saúde, as dez maiores empresas detinham 38% dos beneficiários em 1986. Hoje possuem 55%. No Brasil, esse movimento ainda está no início -- as dez maiores têm 25% do mercado.

As fusões e aquisições são a resposta a uma realidade que é comum no mundo todo. "Os custos relacionados à medicina aumentam em uma escala muito maior que a produção de riqueza das sociedades", afirma Ferraz, do Fleury. Isso acontece devido ao fenômeno que mais impulsiona o setor -- a evolução tecnológica. Ao mesmo tempo que equipamentos e materiais vêm revolucionando os diagnósticos e tra tamentos de doenças, estudos como os do genoma humano abrem novas fronteiras. "Isso significa a possibilidade de criação de mercados hoje inexistentes e, portanto, mais oportunidades na área da saúde", diz José Carlos Góes, presidente da subsidiária brasileira da Milliman, maior empresa americana de consultoria na área de saúde. "Mas a necessidade de se atualizar rapidamente aumenta as dificuldades de ganhar dinheiro no setor."

O desafio de acompanhar esse avanço é generalizado. No mundo todo, governo e empresas privadas têm de lidar com uma conta difícil de fechar. Nos Estados Unidos, por exemplo, a inflação acumulada de 2000 a 2003 foi de 12%. No mesmo período, os custos da área de saúde subiram 68%. O aumento da expectativa de vida mundial ajuda a agravar o descompasso da equação custos versus riqueza gerada. A população idosa, a que mais gasta com saúde, é a que menos pode pagar, porque deixa de ser economicamente ativa. Esse desequilíbrio afeta diretamente as operadoras de planos de saúde, que repassam o problema para os hospitais, os centros de medicina diagnóstica e os médicos.

As empresas desse setor lidam com uma agravante no Brasil. Vivemos num sistema misto. Planos de saúde individuais têm seus reajustes regulados pelo governo. Hospitais, centros de diagnósticos e fabricantes de equipamentos, não. Pressionados pelo Estado, esses planos médicos tentam controlar os custos da cadeia. O poder deles cresce na medida da dependência dos prestadores de serviços. Isso explica, em parte, por que hospitais e centros de elite, como o Einstein e o Fleury, conseguem condições melhores de preços. Graças à qualidade do serviço prestado, conseguiram criar uma marca, garantir a fidelidade dos usuários e escapar das imposições das tabelas dos planos de saúde. Empresas do setor com menos poder de fogo dependem mais dos planos para atrair clientes, sujeitam-se ao aperto das tabelas de preços e acabam levadas de roldão em momentos de quebradeira. Por isso, a crise de um plano de saúde nunca é uma crise isolada.

Para fugir do aumento dos custos, as empresas normalmente optam por duas saídas. Uma delas é evitar ao máximo clientes de alto risco -- idosos e portadores de doenças crônicas. Diante disso, a venda de planos de saú de individuais é, hoje, um negócio em declínio. A outra é investir na prevenção e no monitoramento de pacientes crônicos. No ano passado, a revista americana Fortune elegeu a empresa American Healthways, especializada em monitoramento de clientes de alto risco para planos de saúde, como a mais promissora em sua lista de novos negócios. Por aqui, a AxisMed trabalha de maneira muito semelhante à americana. Sua equipe de 26 enfermeiras reveza-se em ligações e em visitas a cerca de 2 000 pessoas que sofrem de doenças crônicas. Esses pacientes pertencem a sete operadoras de planos de saúde, que têm suas carteiras de clientes rastreadas por um software. Com esse programa, a empresa identifica os prováveis portadores de doenças crônicas e estabelece um plano de monitoramento. Fundada há três anos, a empresa mais que triplicou seu faturamento de 2003 para 2004, passando de 800 000 reais para 2,6 milhões de reais.

A Intermédica, uma das maiores operadoras de planos de saúde do país em número de clientes, trabalha com o monitoramento de pacientes crônicos desde 1996 e com saúde preventiva desde 1982. No ano passado, 44 000 clientes da operadora participaram de cursos relacionados à saúde. Uma equipe de 70 estagiárias percorre as salas de espera dos centros clínicos da Intermédica pesquisando o estado de saúde dos clientes, convidando-os para as palestras e encaminhando-os a programas de apoio a pacientes crônicos que monitoram o tratamento. Com esses programas, houve redução de até 80% nos gastos com esse tipo de cliente. "Trabalhamos com o conceito de que plano de saúde não existe para tratar doenças", afirma Paulo Sérgio Barbanti, presidente da Intermédica. "Isso significa prevenir a doença e, quando não for possível, tratá-la."
Estágios diferentes
Quanto as dez maiores empresas de planos de saúde detinham do mercado americano na década de 80 e quanto concentravam no início desta década
Antes
Depois
38%
55%
No Brasil, as dez maiores empresas têm 25%
CONCLUSÃO No Brasil, o setor ainda é muito pulverizado, o que inviabiliza os ganhos de escala e aumenta os custos
Fontes: Goldman Sachs, BAH, ANS
Fonte: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0833/noticias/quem-ganha-dinheiro-com-saude-m0051486