Introdução A insuficiência renal crônica (IRC) é doença de elevada morbidade e mortalidade. A incidência e a prevalência da IRC em estádio terminal (IRCT) tem aumentado progressivamente, a cada ano, em “proporções epidêmicas”, no Brasil e em todo o mundo. O custo elevado para manter pacientes em tratamento renal substitutivo (TRS) tem sido motivo de grande preocupação por parte de órgãos governamentais, que em nosso meio subsidiam 95% desse tratamento. Em 2002 estimava-se terem sido gastos R$ 1,4 bilhões no tratamento de pacientes em diálise crônica e com transplante renal. A despeito de inúmeros esforços para se coletar dados a respeito de pacientes com IRCT no Brasil, ainda não temos um sistema nacional de registro que forneça anualmente dados confiáveis do ponto de vista epidemiológico. Além disso o nosso conhecimento de dados a respeito de pacientes com IRC em estádio não terminal, é ainda muito mais precário. Nesse capítulo, apresentaremos dados coletados por diversas fontes, Sociedade Brasileira de Nefrologia, Ministério da Saúde e estudos individuais realizados na Escola Paulista de Medicina, Unifesp. Dados Epidemiológicos Inicialmente, deve-se destacar que a IRCT é doença grave, e mesmo com o TRS, tem, em nosso meio, mortalidade superior em números absolutos à maioria das seguintes neoplasias, como as de colo de útero, colon/reto, próstata e mama; e próximo a de câncer de estomago (Tabela 1).
de 2006 (1), mostra que mais da metade dos pacientes faziam tratamento na região sudeste do país (Fig. 1). Sendo a prevalência de pacientes tratados, um pouco maior na região sudeste que sul (Fig. 2).
No Brasil, em janeiro de 2006 a prevalência de pacientes em diálise por milhão da população (pmp) era de 383 (Fig 2,3), tendo tido um aumento médio no número absoluto de pacientes de cerca de 9% nos últimos anos (2). Cerca de 5% dos pacientes em diálise fazem tratamento utilizando medicinas de grupo e/ou seguros saúde particular, e não são computados nas e statísticas governamentais. Assim sendo, estima-se que em janeiro de 2006 o número de pacientes em diálise fosse de 70872, que adicionada a estimativa dos pacientes com enxerto renal funcionante, fornecia uma prevalência global de pacientes em TRS de 491 pacientes/pmp (Tabela 2). Destaca-se ainda que 91% dos pacientes com IRCT tem recebido tratamento por meio de hemodiálise e 9% recebem diálise peritoneal (Fig. 4). É ainda importante destacar que 26% dos pacientes em diálise tem mais de 60 anos de idade, e que, essa proporção tende a aumentar com o aumento progressivo verificado na esperança de vida da população. Nossas taxas de prevalência de IRCT tratada são cerca de 4 vezes menores que a dos EUA e Japão, e metade das taxas da Itália, França e Alemanha (3). Naturalmente, a menor taxa de diagnóstico de IRC, e a menor disponibilidade de tratamento dialítico em nosso meio explicam em parte nossa menor taxa de prevalência comparada à internacional. Entretanto, parece-nos que o fator mais importante seja a menor sobrevida de nossos pacientes diabéticos e hipertensos que morrem mais precocemente de outras causas, impedindo que atinjam IRC em estádio terminal.
A taxa de incidência anual estimada de pacientes novos em diálise em 2005 foi de 175 pmp, variando de 93 pacientes/pmp na região Norte até 253 pacientes/pmp na região Centro-Oeste (Fig. 5). Portanto, para uma população de 185 milhões em 2006, estima-se que surjam cerca de 32.375 novos pacientes renais crônicos t erminais ao ano no Brasil.
Conforme dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos - ABTO, o número de transplantes renais no país entre 2000 e 2002 variou em torno de 3000 por ano. Em 2002 foram realizados 2990 transplantes renais no país, sendo 59% com doador vivo e 41% com doador cadáver. Estimamos que em 2005, 47% (n= 33.247) dos pacientes em diálise estavam em fila aguardando transplante com doador cadáver (1). Causas de IRC Conforme inquéritos realizados pela Sociedade Brasileira de Nefrologia em 1996/97 (4), as principais doenças reportadas como causa de IRCT em pacientes incidentes são hipertensão arterial (24%), glomerulonefrite (24%) e diabetes mellitus (17%) (Tabela 3). Entretanto, a validade desses diagnósticos pode ser questionada devido à não comprovação histológica e a falta de seguimento anterior ao estádio terminal na maioria desses pacientes. Estudos epidemiológicos prospectivos estabeleceram com clareza a relação causal entre hipertensão arterial (seja sistólica ou diastólica) e insuficiência renal crônica. A prevalência da hipertensão arterial na população adulta em nosso meio é superior a 25%. Muitos desses indivíduos não sabem ser hipertensos, e entre os que sabem, menos de 30% são adequadamente tratados. Portanto, há grande potencial para que nos próximos anos a hipertensão arterial continue a ser causa importante de IRC.
Entre as glomerulopatias, a glomeruloesclerose segmentar e focal e a glomerulonefrite membranoproliferativa são as que mais freqüentemente conduzem a IRC. Destaque-se que a associação desta última com agentes infecciosos (estreptococos, vírus das hepatites B e C, shistosoma mansoni, etc.) faz com que esta continue sendo um tipo histológico comum em nosso meio, ao contrario do que ocorre em outros países. Entre as glomerulopatias associadas a doenças sistêmicas, merece destaque a doença renal secundária ao lupus eritematoso. Há ainda uma série de possíveis associações causais de relevância não bem definida entre glomerulonefrites e nefrites intersticiais, e inúmeros agentes infecciosos, tóxicos, ambientais e de natureza genética, que necessitam de melhor investigação. Na população em diálise em dezembro de 1999, a prevalência de sorologia positiva para os vírus das hepatites C e B foi de 24% e 5%, respectivamente. Provavelmente a grande maioria desses indivíduos tenha sido contaminada após o início da diálise. Em janeiro de 2006, havia 17.878 (25%) pacientes diabéticos em diálise no Brasil. Nos EUA, mais de 40% dos pacientes que iniciam diálise tem nefropatia diabética. Embora a prevalência dos diabéticos em diálise venha aumentando nos últimos anos em nosso meio, muitos dos pacientes diabéticos morrem de outras causas antes de atingir IRCT. Além disso, a maioria dos diabéticos em diálise apresenta diversas comorbidades associadas que limitam sobremaneira sua sobrevida e qualidade de vida. Sobrevida de Pacientes com IRCEm 2005, a taxa de mortalidade anual bruta (número de óbitos/pacientes emdiálise no meio do ano) foi de 13% (1). Essa taxa de mortalidade tem semantido constante apesar das melhoras técnicas, equipamentos, filtros de diálise, etc.; talvez isso se deva ao fato de que estes avanços estejam sendo contrabalançados pela maior gravidade e idade dos pacientes que iniciaram tratamento nos últimos anos. Conforme os dados analisados pelo Ministério da Saúde, em 88 mil pacientes que realizaram diálise crônica de 1997 até 2000, a sobrevida atuarial foi de 80% ao final de uma ano de TRS (5) (Fig. 6). Não houve diferença de sobrevida em relação ao sexo e ao tipo de diálise. Entre os diversos fatores de risco para mortalidade, idade, presença de diabetes e número de comorbidades associadas são os mais importantes.
Na Tabela 4 mostramos taxas de sobrevida atuarial para pacientes em diálise na região norte da cidade de São Paulo após 1 e 5 anos de tratamento (2). Para pacientes com idade menor que 50 anos e não diabéticos, a probabilidade de sobrevida foi de 88% e 62%, respectivamente. Para aqueles com mais de 50 anos e diabéticos, as taxas foram de 68% e 23%, respectivamente. Essas estimativas são inferiores às taxas de sobrevida de receptores de enxerto renal (85% para receptores de doador vivo e 73% para receptores de doador cadáver, após 5 anos, para transplantes efetuados no Brasil entre 1992-1998, Sipac-Rim). Deve-se, entretanto ressaltar a dificuldade de comparabilidade entre esses grupos (viés de seleção), visto que os pacientes transplantados tem menor média de idade e de número de comorbidades em relação aos que permanecem em diálise.
Tão importante quanto a sobrevida é a qualidade de vida dos pacientes com IRCT. Inúmeros trabalhos mostram que os principais fatores que melhoram a qualidade de vida desses pacientes são: realização de transplante renal, uso de eritropoitina, melhor estado nutricional, diagnóstico precoce de IRC, menor número de comorbidades, melhor nível sócio-econômico, maior suporte familiar, suporte social e psicológico, etc. (6-8). Aspectos da IRC em fase “não terminal” Há diversos fatores que podem interferir com diagnóstico, encaminhamento e aceitação de pacientes para diálise. Diagnóstico e encaminhamento tardios para diálise são muito comuns em nosso meio, podendo atingir até 50% dos pacientes com IRCT em São Paulo (9,10). A Tabela 5 mostra que apenas 29% dos pacientes iniciando tratamento dialítico em São Paulo tinham sido previamente vistos por nefrologistas. As principais causas para o encaminhamento tardio são: o fato da doença renal crônica ser freqüentemente assintomática, resistência dos pacientes ao tratamento, tendenciosidades dos clínicos gerais ao não encaminhar adequadamente os pacientes, seleção de pacientes com menos comorbidades para iniciar diálise, estrutura deficiente do sistema de saúde e falta de acesso ao tratamento. Destacamos que elevada porcentagem dos pacientes renais crônicos apresentam evidências de desnutrição conforme vai havendo progressão da piora da função renal (11), o que pode ainda mais facilitar a instalação de processos infecciosos ao início da diálise. As conseqüências do encaminhamento tardio se refletem em maior morbidade, mortalidade, custos e pior qualidade de vida. Nós observamos que pacientes com diagnóstico tardio tiveram sobrevida 18% inferior após 6 meses em diálise que aqueles com diagnóstico mais precoce (9).
O número de pacientes com algum grau de déficit de função renal não é exatamente conhecido mas pode ser eventualmente estimado. Estima-se que pelo menos 25% da população adulta brasileira tenha hipertensão arterial, ou seja cerca de 26 milhões de indivíduos. Destes, não mais do que 15% teriam a pressão arterial devidamente controlada, portanto, os demais tem maior potencial para evoluírem com IRC. A prevalência de diabetes é de 7,5% da população adulta. Desta forma, cerca de 7,7 milhões de indivíduos teriam diabetes, sendo que mais de 30% destes teriam potencial para desenvolver IRC. A IRC tem sido classificada em 5 fases: 1) ritmo de filtração glomerular (RFG) normal (>90 ml/min.), mas com presença de microalbuminuria; 2) leve, GFR entre 60 e 89 ml/min.; 3) moderada, RFG entre 30 e 59 ml/min.; 4) grave, RFG entre 15 e 29 ml/min.; e 5) IRCT, RFG < 15 ml/mim. Para uma população nacional estimada em 175 milhões em 2003, assumindo-se as estimativas de IRC na população norte-americana (12) e ajustando-se para nossa prevalência 4 vezes menor de IRC em comparação à norte americana, na Tabela 6 mostramos nossas estimativas do número de pacientes com os diversos graus de IRC em nosso meio. Haveria, portanto, de forma conservadora, 3,1 milhões de brasileiros com algum déficit de função renal (níveis 2 a 5), o que corresponderia a 1,7% da população. Cerca de dois milhões de indivíduos teriam IRC moderada, severa ou IRCT.
Em 2002 havia 2540 nefrologistas no Brasil para cuidar de 55 mil pacientes com IRCT (22 pacientes por nefrologista). Para cada nefrologista havia 57 pacientes com IRC graus 4 ou 5, e um nefrologista para 768 pacientes com IRC graus 3, 4 ou 5. Caso a população em diálise continue a crescer 5-7% ao ano e a de nefrologistas 3,4% ao ano, em 2010 teremos 95 mil pacientes com IRCT para 3120 nefrologistas (ou seja, 30 pacientes por nefrologista). A maior velocidade de crescimento do número de pacientes do que de nefrologistas evidencia a necessidade de melhor equacionamento da assistência ao paciente com IRC em nosso meio. Conclusão Os dados apresentados mostram diversos aspectos da população de pacientes com IRC em nosso meio. Além disso, servem para subsidiar decisões para melhorar a assistência a esses pacientes. É fundamental a criação e a manutenção a longo prazo de um sistema nacional de informações com registro, análise e divulgação de dados epidemiológicos de pacientes com insuficiência renal crônica em fase não terminal e em tratamento renal substitutivo no país, para que seja possível melhor planejamento da assistência e melhor efetividade do tratamento. Prevenção da Insuficiência Renal Crônica Define-se como insuficiência renal crônica a presença de quantidade aumentada de proteína na urina (> 150 mg/dia) e/ou redução do ritmo de filtração glomerular (<60 ml/min.) por mais de 3 meses. Indivíduos sob maior risco de apresentarem insuficiência renal crônica são: diabéticos, hipertensos, antecedentes de doença cardiovascular, história familiar de insuficiência renal, portadores de outras doenças renais (rins policísticos, malformações congênitas, etc.) e raça negra. Estes indivíduos, em particular, devem realizar com maior freqüência a medida da taxa de filtração glomerular e de proteinuria. As principais medidas recomendadas para os indivíduos com insuficiência renal crônica, visando a redução de sua progressão são as seguintes:
Referências 1. http://www.sbn.org.br/censo/2006, acessado em setembro de 2006. 2. Sesso R. Epidemiologia da Insuficiência Renal Crônica no Brasil. Guia de Nefrologia. Ajzen H, Schor N, Ed. Manole, São Paulo, 2002, pp 1-7. 3. US Renal Data System. 2002 USRDS Annual Data Report. National Institutes of Health. National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases, Bethesda, MD 4. Departamento de informática da SBN, biênio 1997-98. Registro Brasileiro de Diálise, 1997.http://www.epm.br/medicina/registro/97/rghd97.htm 5. Estudo epidemiológico brasileiro sobre terapia renal substitutiva. Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde – versão preliminar. Brasília, Ministério da Saúde, 2002 6. Sesso R, Yoshihiro MM. Time of diagnosis of chronic renal failure and assessment of quality of life in hemodialysis patients. Nephrol Dial Transplant 10:2111-6, 1997 7. Neto JFR, Ferraz MB, Cendoroglo M, Draibe S, Yu L, Sesso R. Quality of life at the initiation of maintenance dialysis treatment – a comparison between the SF-36 and the KDQ questionnaires. Qual Life Res 9:101-7, 2000 8. Sesso R, Rodrigues Neto JF, Ferraz MB. Impact of socioeconomic status on quality of life of ESRD patients. Am J Kidney Dis 2003;41:186-95 9. Sesso R, Belasco AG. Late diagnosis of chronic renal failure and mortality on maintenance dialysis. Nephrol Dial Transplant 11:2417-20, 1996 10. Sesso R, Belasco AG, Ajzen H. Late diagnosis of chronic renal failure. Braz J Med Biol Res 29:1473-8, 1996 11. Duenhas MR, Draibe SA, Avesani CM, Sesso R, Cuppari L. Influence of renal function on spontaneous dietary intake and on nutritional status of chronic renal insufficiency patients. Eur J Clin Nutr 2003;57:1473-8 12. Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. Prevalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: Third National Health and Nutrition Examination Survey. Am J Kidney Dis 2003;41:1-12 13. Kidney Int 2006;70:821-823 14. Am J Med 2006;119 (suppl5):S40-S47 15. Am J Med 2005;118:1323-1330 Divisão de Doenças Crônicas Não Transmissíveis e-mail: dvdcnt@saude.sp.gov.br |