As coagulopatias hereditárias são doenças hemorrágicas resultantes da deficiência quantitativa e/ou qualitativa de uma ou mais das proteínas plasmáticas (fatores) da coagulação e são representadas pelas hemofilias A e B. A maioria dos pacientes apresenta deficiência quantitativa ou qualitativa de um dos fatores da coagulação (fator VIII para a hemofilia A ou fator IX para o B). A deficiência de um desses fatores se manifesta pela presença de sangramento espontâneo, em situações de trauma ou procedimentos cirúrgicos, ou diagnosticados ocasionalmente.
Sob um critério estritamente etiológico, as coagulopatias hereditárias podem ser classificadas de acordo com as seguintes deficiências de fator:
1. Deficiência de fibrinogênio (fator I), que subdivide-se em:
1.1. Afibrinogenemia
1.2. Hipofibrinogenemia
1.3. Disfibrinogenemia
2. Deficiência de protrombina (fator II)
3. Deficiência de fator V
4. Deficiência de fator VII
5. Deficiência de fator VIII - Hemofilia A
6. Deficiência de fator IX - Hemofilia B
7. Deficiência de fator X
8. Deficiência de fator XI
9. Deficiência de fator XII
10. Deficiência do fator estabilizador da fibrina (fator XIII)
11. Doença von Willebrand
Dentre as coagulopatias hereditárias, as hemofilias e a doença von Willebrand (DVW) são as mais comuns. São consideradas coagulopatias raras as deficiências de fatores I, II, V, VII, X e XIII.
Hemofilias A e B
A hemofilia é uma doença hereditária hemorrágica, ligada ao cromossoma X. As manifestações hemorrágicas no primeiro ano de vida são observadas nas formas moderadas e graves, sendo os hematomas secundários a injeções intramuscular (IM), punções venosas, traumas e sangramentos em mucosa oral as mais frequentes. Raramente, observa-se no recém-nascido hemorragia no coto umbilical e no sistema nervoso central (SNC). Como sangramentos no SNC podem ocorrer, muitas vezes espontaneamente, cefaléias não explicadas devem ser tratadas como hemorragias intracranianas, até que o quadro se esclareça. Outra hemorragia potencialmente grave é a retroperitonial (localizada atrás do peritôneo), que pode ser volumosa a ponto de causar choque hipovolêmico (diminuição acentuada do volume sanguíneo), se tratada tardiamente.
Doença de von Willebrand
É uma doença hemorrágica hereditária causada por uma diminuição ou uma disfunção da proteína chamada fator de von Willebrand (FvW). Isto ocorre devido à mutação no cromossomo 12 e é caracterizada por deficiência qualitativa ou quantitativa do fator de von Willebrand. A diversidade de mutações leva ao aparecimento das mais variadas manifestações clínicas possibilitando a divisão dos pacientes em vários tipos e subtipos clínicos. A coagulopatia se manifesta basicamente através da disfunção plaquetária associada à diminuição dos níveis séricos do fator VIII coagulante, existindo também casos raros de doença de von Willebrand adquirida. Foi descrita pela primeira vez em 1925 pelo médico finlândes Erik Adolf von Willebrand. Essa é a doença hemorrágica mais comum e atinge cerca de 2% da população mundial, alcançando igualmente ambos os sexos; porém, mulheres têm mais probabilidade de ter a doença diagnosticada pelas manifestações durante a menstruação.
Fator de von Willebrand
O fator de von Willebrand é uma glicoproteína produzida pelas células endoteliais e megacariócitos, presente no plasma e nas plaquetas.
Sinais e sintomas
O quadro clínico, em geral, é de instalação abrupta, podendo ocorrer:
sangramentos cutâneos (presença de petéquias - pequenos pontos vermelhos no corpo, na pele ou mucosas, causada por uma pequena hemorragia de vasos sanguíneos); equimoses; sangramentos mucosos: presença de epistaxe (sangramentos nasais), gengivorragia, menorragia, hematúria ou sangramentos no trato gastrointestinal, sangramentos menstruais prolongados.
Hemoglobinopatias
Hemoglobinopatias são doenças genéticas decorrentes de anormalidades na estrutura ou na produção da hemoglobina, molécula presente nos glóbulos vermelhos e responsável pelo transporte do oxigênio para os tecidos. Mais de 300 defeitos estruturais da hemoglobina já foram identificados, sendo a anemia falciforme a hemoglobinopatia mais conhecida. Os defeitos na taxa de produção das cadeias de hemoglobina são as talassemias (alfa ou beta-talassemias, de acordo com a cadeia cuja síntese está prejudicada).
A hemoglobina do ser humano adulto (hemoglobina A) é uma proteína formada por duas cadeias alfa e por duas cadeias beta, codificadas por genes diferentes. As hemoglobinopatias são causadas por uma alteração em um desses genes, afetando a estrutura da molécula (hemoglobinopatia estrutural) ou sua taxa de produção (talassemia). Fonte: Centro de Educação e Apoio para Hemoglobinopatias (Cehmob-MG).
A hemoglobinopatia mais comum é a doença falciforme, com alta prevalência na população brasileira. Alguns pacientes sofrem dessa doença em sua forma mais grave, apresentando “crises falcêmicas”, que são crises de dor. Os sintomas possíveis, além de uma anemia crônica, são disfunções no baço, queda de imunidade, deficiência no crescimento, alterações cardiovasculares, ósseas, renais, oftalmológicas, além do risco de sofrer acidente vascular cerebral (AVC), causando sequelas motoras e do desenvolvimento.
Doença Falciforme
É uma das doenças hereditárias mais comuns no Brasil e apresenta, já nos primeiros anos de vida, manifestações clínicas importantes, o que representa um sério problema de saúde pública no país. Em Minas Gerais, a doença falciforme foi incluída na triagem neonatal em 1998.
A doença falciforme é resultante de alteração genética caracterizada pela presença de um tipo anormal de hemoglobina denominada Hemoglobina S (HbS). Ela faz com que as hemácias adquiram a forma de foice (daí o nome falciforme), em ambiente de baixa oxigenação, dificultando sua circulação e provocando obstrução vascular.
As hemácias têm a função de carregar oxigênio para os tecidos, principal combustível para os órgãos. No caso da doença falciforme, pelo fato de as hemácias apresentarem a forma de foice são destruídas precocemente, além de se agregarem e diminuir a viscosidade do sangue nos pequenos vasos do corpo. Com isso, ocorre lesão nos órgãos atingidos, causando dor, destruição dos glóbulos vermelhos, icterícia e anemia.
A forma mais frequente da doença, e também a mais grave, é a homozigótica, que é denominada Anemia Falciforme ou Drepanocitose (Hb SS) e ocorre quando a criança herda de ambos os pais o gene S. Quando a criança herda o gene S de um dos pais e, do outro, o gene para a Hemoglobina A normal, ela será apenas portadora do Traço Falciforme (HbAS). Nesse caso, não apresentará a doença, podendo, no entanto, transmiti-la aos filhos.
Sintomas
Crises de dor
É a complicação mais frequente da doença falciforme, sendo muitas vezes a primeira manifestação da doença. As crises duram normalmente de 4 a 6 dias, mas podem persistir por semanas. Infecção, febre, desidratação e exposição ao frio extremo podem precipitar as crises de dor. Algumas pessoas na idade adulta se queixam de que depressão e exaustão física podem iniciar as crises. Elas podem ocorrer nos braços, pernas, nas articulações, no tórax, no abdômen e nas costas.
Icterícia (cor amarela nos olhos)
É o sinal mais comum da doença. Quando o glóbulo vermelho se rompe, aparece um pigmento amarelo no sangue, que se chama bilirrubina. A urina fica da cor de coca-cola e o branco dos olhos torna-se amarelo. O quadro não é contagioso e não deve ser confundido com hepatite.
Infecções e febre
As infecções constituem a principal causa de morte das pessoas com doença falciforme. Elas podem provocar a morte das crianças em poucas horas. As pneumonias (Infecções do pulmão) são as mais frequentes. Também as meningites, as infecções nos rins e osteomielites (infecção no osso) ocorrem mais em crianças e adultos. Os episódios de febre, principalmente nas crianças, devem ser considerados sinais de perigo iminente e, na sua persistência, é indispensáavel procurar assistência médica. Por causa da maior ocorrência das infecções até os cinco anos de idade, é obrigatório o uso de antibiótico preventivo (penicilina ou eritromicina), desde a descoberta da doença até essa idade. O cartão de vacinas deve ser atualizado e complementado com vacinas como a antipneumocócica.
Anemia
A maioria das pessoas apresenta anemia crônica, com níveis de hemoglobina tão baixos como 6,0 g/dl. Por ser anemia crônica, o organismo está adaptado a conviver com esses níveis mais baixos de hemoglobina. A causa dessa anemia é a destruição rápida de hemácias e, não, da falta de ferro. Em algumas situações, pode ser agravada e haver necessidade de transfusão de concentrado de hemácias, como nas infecções graves, sequestro esplênico e aplasia (parada de produção de hemácias pela medula óssea).
Síndrome mão-pé
Nas crianças pequenas, as crises de dor podem ocorrer nos pequenos ossos das mãos e dos pés, causando inchaço, dor e vermelhidão no local.
Crise de sequestração esplênica
As pessoas com doença falciforme podem sofrer repentinamente um acúmulo de grande volume de sangue no baço, que é denominado crise de sequestração esplênica. Nessas crises, o baço aumenta rapidamente de volume e ocorre queda de nível de hemoglobina, podendo provocar choque e morte. Essa crise é uma das principais causas de morte nas crianças com doença falciforme. Ela deve ser prontamente diagnosticada e tratada. Por isso, os pais e responsáveis aprendem com os profissionais de saúde a fazer a apalpação do baço, para notar se ele, de repente, aumentou de tamanho.
Acidente vascular cerebral
É quando a crise vaso-oclusiva acontece nos vasos do cérebro, causando derrame. Aproximadamente 10% das pessoas com doença falciforme, entre 3 e 15 anos de idade, são vítimas de derrame. Dependendo da área afetada, a criança pode apresentar paralisia dos membros (braços e pernas) ou rosto, convulsões, coma e distúrbio da fala. Embora a recuperação possa ser completa, são frequentes dano intelectual, sequelas neurológicas graves e morte. A repetição do acidente vascular cerebral provoca danos maiores e aumenta a mortalidade.
Priapismo
Quando a crise vaso-oclusiva ocorre nos vasos que irrigam o pênis, há ereção prolongada e dolorosa. É mais frequente nos adolescentes ou pré-adolescentes. Os episódios prolongados, com duração de mais de três horas, devem ser encaminhados ao serviço de urgência. Antes disso, deve ser estimulada a hidratação, exercícios leves e banhos mornos. Há risco de impotência sexual, caso o episódio não seja tratado adequadamente.
Diagnóstico
Com a sua inclusão no Programa Estadual de Triagem Neonatal (PETN-MG), em março de 1998, a doença falciforme e outras hemoglobinopatias passaram a ser identificadas pelo Teste do Pezinho em Minas Gerais. O diagnóstico é realizado pelo Laboratório de Triagem Neonatal do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad), que funciona na Faculdade de Medicina da UFMG.
Tratamento
O recém-nascido identificado com doença falciforme será encaminhado para a consulta numa unidade da Fundação Hemominas e acompanhado por profissionais das Unidades Básicas de Saúde (UBS). As consultas deverão ser mensais para crianças com até um ano de vida e, de três em três meses, com até cinco anos.
A Fundação Hemominas é a responsável pelo seguimento hematológico das pessoas com hemoglobinopatias do estado de Minas Gerais, sendo esse acompanhamento realizado em 11 unidades regionais.
· Hemocentro de Belo Horizonte
· Hemocentro Regional de Montes Claros
· Hemocentro Regional de Juiz de Fora
· Hemocentro Regional de Governador Valadares
· Hemocentro Regional de Uberaba
· Hemocentro Regional de Uberlândia
· Núcleo Regional de Sete Lagoas
· Núcleo Regional de Divinópolis
· Núcleo Regional de Patos de Minas
· Núcleo Regional de Manhuaçu
· Núcleo Regional de Diamantina
O atendimento às pessoas com doença falciforme é feito por equipe multiprofissional, com adoção de protocolo de medidas preventivas e tratamento das complicações da doença. Além disso, pessoas com doença falciforme, familiares e profissionais de saúde passam por programa de educação continuada. Pacientes recebem gratuitamente os medicamentos básicos para o tratamento.
Em função de sua gravidade, a doença falciforme requer, para acompanhamento adequado, avaliações especializadas (cardiológicas, odontológicas, entre outras) e laboratoriais e de imagem para identificação precoce de complicações (litíase, miocardiopatia, nefropatia), propiciando melhor acompanhamento.
Talassemia
Talassemia deriva da combinação das palavras gregas thalassa = mar, e haemas = sangue. Com esta palavra, os médicos queriam descrever uma doença do sangue cuja origem está nos países banhados pelo mar, mais precisamente, no Mediterrâneo, como Itália e Grécia.
A doença consiste em uma anemia hereditária em que ocorre a produção de glóbulos vermelhos menores e com menos hemoglobina (componente dos glóbulos vermelhos responsável pelo transporte de oxigênio no nosso corpo), o que causa a anemia. A talassemia não é contagiosa e não é causada por deficiência na dieta de ferro, carência de vitaminas ou sais minerais.
Hoje, a doença atinge praticamente o mundo todo, por causa das migrações. Percentagens relevantes de portadores de talassemia são registrados no Canadá, Estados Unidos, Brasil e Argentina, bem como na Índia e Austrália.
Tipos
O tipo mais comum no Brasil e no mundo é a beta-Talassemia. Clinicamente são identificados dois grupos de beta-Talassemia: Talassemia Minor (ou traço talassêmico) e Talassemia Major. Alguns pacientes ficam entre esses dois extremos, sendo considerados portadores da Talassemia Intermediária.
Talassemia Minor
A talassemia mínor, ou traço talassêmico, não precisa de tratamento, mas é muito importante saber se a pessoa é portadora da doença. Por se tratar de uma deficiência genética, ela pode ser transmitida aos filhos e gerar um portador de talassemia major, caso o cônjuge também seja portador do traço talassêmico. Além disso, se a alteração não é descoberta, as crianças acabam sendo submetidas, inutilmente, a tratamentos repetidos para anemia por deficiência de ferro.
Talassemia Major
A talassemia major, se não for tratada, faz com que a criança pare de crescer e o baço vai se tornando maior. A medula óssea aumenta dentro dos ossos, tentando fazer mais e mais glóbulos vermelhos. Porém, os glóbulos vermelhos que a medula produz não contêm hemoglobina suficiente. Na medida em que o tempo passa, o baço, cuja função é destruir os glóbulos vermelhos velhos em circulação, começa a destruir também os glóbulos vermelhos jovens e, posteriormente, os glóbulos brancos e as plaquetas.
Sintomas
O talassêmico minor habitualmente não apresenta qualquer sintoma, levando uma vida totalmente normal. Na maioria dos casos, a única alteração evidente é a cor da pele, que se apresenta mais pálida do que nas pessoas normais.
Aparentemente saudáveis ao nascer, os talassêmicos major desenvolvem, ao longo do primeiro ano de vida, os primeiros sinais da anemia que caracterizam a doença: palidez, desânimo, falta de apetite e hipodesenvolvimento. Com o tempo, tornam-se ictéricos (a pele e a esclerótica ocular tornam-se amarelos) e há, ainda, deformidades ósseas. A anemia persistente leva a um aumento do baço, fígado e coração. Os problemas cardíacos e as infecções são as causas mais comuns de morte entre as crianças com Talassemia major. O diagnóstico é feito a partir de estudo do sangue do paciente e de seus familiares.
Tratamento
A Fundação Hemominas é a responsável pelo seguimento clínico-hematológico das pessoas com talassemia em Minas Gerais, sendo esse acompanhamento realizado em 11 unidades regionais (citadas acima). É preciso fazer a transfusão de sangue, a cada duas a quatro semanas, a fim de corrigir a anemia e garantir que os tecidos recebam uma quantidade normal de oxigênio.
Uma alternativa de cura cada vez mais utilizada é o transplante da medula óssea. A medula óssea de um talassêmico não é capaz de produzir uma quantidade de glóbulos vermelhos normais - se ela for substituída por medula óssea normal, o problema estará resolvido. Para efetuar a cirurgia, é necessário ter um doador compatível. Os doadores mais prováveis são um irmão ou uma irmã do paciente talassêmico. De modo geral, um entre quatro irmãos é um doador compatível.
Manual de Tratamento das Coagulopatias Hereditárias (Coordenação da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados; Departamento de Atenção Especializada; Secretaria de Atenção à Saúde; Ministério da Saúde –Março/2005);
Coagulopatias Hereditárias – Hemofilias A e B (Dra. Mitiko Murao – Fundação Hemomin