HIPOTERMIA
VERSUS NORMOTERMIA DURANTE A
CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA EM CIRURGIA CARDÍACA
Bruna Caixeta Cardoso[1]
Orientador:
Jeffchandler Belém[2]
RESUMO
A
Circulação extracorpórea (CEC) e o uso de uma máquina coração-pulmão
constituem-se em um divisor de águas na área da cirurgia cardiovascular e,
entre as técnicas utilizadas para proteção de órgãos durante a derivação
cardiopulmonar, se encontra a hipotermia.
No entanto, existem evidências que demonstram que a hipotermia induz o
surgimento de diversos efeitos deletérios. Com os avanços no conhecimento da
fisiopatologia da CEC, da parada anóxica e dos efeitos deletérios da
hipotermia, surge o uso da normotermia como método de proteção de órgãos
durante o procedimento da CEC. Este artigo teve como objetivo principal
discutir os efeitos da hipotermia para, ao
final, concluir se os benefícios da técnica justificam o risco de exposição a
esses efeitos. E, ainda, avaliar se a normotermia seria mais eficaz na proteção
de órgãos durante a cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea. Os
resultados evidenciaram que a hipotermia e o reaquecimento são responsáveis,
entre outros efeitos, por uma maior incidência de infecção da ferida cirúrgica,
sangramento mais prolongado, maior extravasamento de fluidos com síndrome de
permeabilidade capilar, alteração da entrada de oxigênio e glicose nos tecidos
e tempo de CEC mais prolongado. Por outro lado, há diversos estudos apontando
para a eficácia e segurança da CEC sob normotermia, concluindo-se que não deve
ser descartada tal possibilidade, embora sejam necessários mais estudos.
Palavras-chave:
Cirurgia cardíaca. Circulação extracorpórea. Hipotermia. Normotermia.
ABSTRACT
Cardiopulmonary
bypass (CPB) and the use of a heart-lung machine are a watershed in the field
of cardiovascular surgery and, from the techniques used for organ protection
during cardiopulmonary bypass, is hypothermia . However, there is evidence to
show that induce a hypothermic many deleterious effects. With advances in
pathophysiology of CPB , anoxic arrest and the deleterious effects of
hypothermia , the use of normothermia as a method of organ protection during
CPB procedure arises . This article aimed to discuss the effects of hypothermia
for , in the end, conclude whether the benefits justify the technical risk of
exposure to these effects . And also assess whether the normothermia would be
more effective in organ protection during cardiac surgery with cardiopulmonary
bypass . The results showed that hypothermia and rewarming are responsible ,
among other effects , a higher incidence of wound infection , longer bleeding ,
increased extravasation of fluids with capillary leak syndrome , changing the input
of oxygen and glucose in tissues and time CPB longer . On the other hand ,
there are several studies pointing to the efficacy and safety of CPB under
normothermic , concluding that it should not be ruled out that possibility ,
although more studies are needed .
Keywords: Cardiac surgery. Extracorporeal circulation. Hypothermia.
Normothermia .
1
INTRODUÇÃO
Para a
realização de diferentes tipos de cirurgia cardíaca, o procedimento de
circulação extracorpórea (CEC) é bastante utilizado e tem como finalidade
proporcionar à equipe cirúrgica um coração imóvel e sem sangue para que
consigam operar, enquanto os diferentes sistemas orgânicos são perfundidos com
sangue oxigenado, ou seja, oferecer um campo cirúrgico limpo, preservando as
características funcionais do coração, de forma que os cirurgiões tenham
segurança para a realização da cirurgia (WESTABY, 1987).
.A
cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea se distingue das demais pelo
fato de que o sangue, durante o procedimento, passa por um aparelho de
derivação cardiopulmonar. Com o aparelho de
circulação extracorpórea, o coração e os pulmões se excluem por completo da
circulação.
O
presente estudo se propõe a discutir, especialmente, sobre a hipotermia
induzida na realização da cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea.
A
hipotermia é a aplicação terapêutica do frio, que consiste em diminuir a
temperatura corporal abaixo de 35ºC, sem chegar a 32ºC. Os benefícios da
hipotermia nessas situações são a diminuição da demanda de oxigênio, exercendo
uma proteção dos órgãos vitais (cérebro, coração, rins), a diminuição da
frequência cardíaca e a melhora da perfusão miocárdica (JANSEN et al., 1992).
No
entanto, a hipotermia durante a cirurgia cardíaca com CEC tem também produzido
efeitos nocivos, conforme a literatura. Nesse sentido, buscar-se-á por meio de
uma revisão bibliográfica, conhecer e discutir cada um desses efeitos para, ao
final, concluir se os benefícios da técnica justificam o risco de exposição a
esses efeitos. E, ainda, avaliar se a normotermia seria mais eficaz na proteção
de órgãos durante a cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea.
2.
METODOLOGIA
Tratou-se
de um estudo do tipo bibliográfico, descritivo-exploratório, com análise
integrativa e sistematizada.
O
estudo bibliográfico se baseia em literaturas estruturadas, obtidas de livros e
artigos científicos, provenientes de bibliotecas convencionais e virtuais. O
estudo descritivo-exploratório visa à aproximação e familiaridade com o
fenômeno-objeto da pesquisa, descrição de suas características, criação de
hipóteses e apontamentos, e estabelecimento de relações entre as variáveis
estudadas no fenômeno (GIL, 2002).
A
análise integrativa é um método que analisa e sintetiza as pesquisas de maneira
sistematizada, contribuindo para o aprofundamento do tema investigado, e, a
partir dos estudos realizados separadamente, constrói-se uma única conclusão,
pois foram investigados problemas idênticos ou parecidos (MENDES, 2005).
Após a definição do tema, foi feita uma busca de
dados virtuais, especificamente no Scientific Electronic Library online
(Scielo). Foram utilizados os descritores: cirurgia cardíaca extracorpórea,
hipotermia, normotermia. O passo seguinte foi uma leitura exploratória das
publicações apresentadas no sítio da Scientific Electronic Library online
(Scielo) e em outros sites, inclusive estrangeiros.
Realizada a leitura exploratória e seleção do
material, principiou a leitura analítica, por meio da leitura das obras
selecionadas, que possibilitou a organização das ideias por ordem de
importância e a sua sintetização que visou à fixação das ideias essenciais para
a solução do problema da pesquisa (GIL, 2002).
Após a leitura analítica, iniciou-se a leitura
interpretativa que tratou do comentário feito pela ligação dos dados obtidos
nas fontes, ao problema da pesquisa e dos conhecimentos prévios. Na leitura
interpretativa, houve uma busca mais ampla de resultados, pois ajustaram o
problema da pesquisa a possíveis soluções. Feita a leitura interpretativa,
iniciou-se a tomada de apontamentos referentes ao problema da pesquisa,
ressalvando as ideias principais e dados mais importantes (GIL, 2002).
A partir das anotações da tomada de apontamentos,
foram confeccionados fichamentos, em fichas estruturadas em um documento do
Microsoft word, que objetivaram a identificação das obras consultadas, o
registro do conteúdo das obras, o registro dos comentários acerca das obras e
ordenação dos registros. Os fichamentos propiciaram a construção lógica do
trabalho, que consistiram na coordenação das ideias, acatando os objetivos da
pesquisa. Todo o processo de leitura e análise possibilitou a criação de duas
categorias.
A seguir, os dados apresentados foram submetidos à
análise de conteúdo. Posteriormente, os resultados foram discutidos com o
suporte de outros estudos, provenientes de revistas científicas e livros, para
a construção do artigo final e publicação do trabalho no formato (ABNT)
Associação Brasileira de Normas Técnicas.
3. REFERENCIAL TEÓRICO
3.1 HIPOTERMIA
A temperatura corporal
interna dos seres humanos costuma ser constante e de, aproximadamente, de 37º
Celsius(C). No entanto, o sistema termorregulador pode, desde que precisamente
controlado, permitir pequenas variações de temperatura, entre 0,2º a 0,4º C
(SESSLER, 1997). A hipotermia é a diminuição da temperatura sanguínea central a
um nível abaixo 36º C, ressaltando que este limite para que assim seja
classificada varia na literatura.
Pode ocorrer hipotermia
não intencional e também terapêutica. A não-intencional ou acidental ocorre
normalmente em pacientes que sofreram traumas ou que se submetem a intervenções
anestésicas e cirúrgicas, entre outros. É causada por diversos fatores como
muita perda de calor, termorregulação fisiológica inibida, ausência de cuidados
preventivos adequados. Tais fatores podem estar presentes, isolados ou
associados.
A hipotermia
terapêutica, por sua vez, é provocada, ou seja, é induzida pelo médico, de
forma consciente e para alcançar objetivos como, por exemplo, obter proteção
neurológica após ressuscitação cardiopulmonar em procedimentos cirúrgicos
neurológicos ou cardíacos mais complexos. A hipotermia terapêutica pode ser em
leve, quando se mantiver entre 32º e 34º C; moderada, quando a temperatura
ficar entre 28º e 32º C; ou profunda, quando for abaixo de 28º C (Landry e Oliver, 2001).
Historicamente, tem-se
que já era utilizada a hipotermia terapêutica pelos antigos gregos, egípcios e
romanos. Já naquela época, Hipócrates recomendava a utilização de frias
bandagens para reduzir hemorragia. Há também relatos de uso de gelo para se
diminuir a dor, em procedimentos de amputações feitas na Rússia por Baron
Larrey na era de Napoleão Buonaparte.
Já no século passado,
no final de década de 30, o Dr. Fay realizou o resfriamento de uma mulher
durante 24 h até 32º C, no tratamento da metástase de um tumor, sob a crença de
que em temperatura baixa, as células cancerígenas não proliferariam. Decorrido
aquele prazo, a mulher foi reaquecida e julgou-se não ter havido qualquer
efeito adverso. Posteriormente, o mesmo médico liderou uma equipe que utilizou
hipotermia em uma centena de pacientes cancerosos. No início da década de 40,
Dr. Fay e Smith divulgaram o uso de hipotermia terapêutica também em pacientes
com traumatismo craniano (BAUE, 1993).
Durante o Nazismo,
utilizou-se largamente a hipotermia nos campos de concentração, sem qualquer
anestesia, na realização de experiências terríveis com seres humanos. O
primeiro uso conhecido de hipotermia em cirurgia cardíaca foi realizado por
Claude Beck e Charles Baylei no final da década de 1950.
O conceito de proteção
neurológica em cirurgias cardíacas é um conceito introduzido por Bigelow e
colaboradores em 1950. Até 1996, os procedimentos utilizando a hipotermia
aumentaram bastante tanto em quantidade quanto em complexidade, resultando em
evidências de seus efeitos deletérios, apesar de se terem observado bons
resultados paralelamente.
Já no ano 2000 o
interesse pelo emprego da hipotermia foi novamente despertado por bons
resultados em procedimentos com pacientes em coma ou após ressuscitação
cárdio-pulmonar e infarto do miocárdio, entre outros, tendo sido observado em
algumas ocasiões que a utilização do procedimento teria sido decisivo.
Simultaneamente passou-se a questionar velhos paradigmas, ressaltando os riscos
existentes.
A termorregulação é um
processo que envolve três etapas, sendo elas: aferente, regulação central e respostas eferentes, conforme resume o
esquema a seguir:
Fig. Resposta fisiológica termorregulatória para
manutenção de normotermia
Fonte: DANZL (2003)
A hipotermia é
utilizada para proteger o coração e o sistema nervoso central. Para proteger o coração, utiliza-se, em
geral, hipotermia local a 10-12ºC, a hipotermia sistêmica é geralmente moderada
(30-35ºC) ou, em raras vezes, profunda (25-20ºC ). Ao diminuir a atividade
metabólica, a hipotermia reduz a necessidade dos administração de
anestésicos ou dos hipnóticos endovenosos e modifica a distribuição do fluxo
sanguíneo e da perfusão tecidual. A diminuição do volume de distribuição faz
com que, por exemplo, aumente a concentração plasmática de propofol durante a
CEC, razão pela qual se costuma diminuir sua administração (MASSEY e
Colaboradores, 1990).
Quanto aos níveis de
ação da hipotermia, algumas experiências realizadas “in vivo” ou em “in vitro”
demonstram que o primeiro deles é metabólico. A redução da temperatura do
cérebro ou do corpo em 1º C é responsável pela queda do metabolismo cerebral
que chega a 28º C, em 6 a 7 % dos casos.
A hipotermia reduz o consumo energético neuronal, atingindo a condução de
estímulos nervosos e o desempenho de atividades eletrofisiológicas. Também
reduz o consumo em relação ao metabolismo basal do neurônio, que se associa à
integridade celular (GOLD, CHARLSON e WILLIAMS-RUSSO, 1995).
A diminuição do
metabolismo diminui o risco de isquemia cerebral, diante da exposição a
insultos isquêmicos, em paradas cárdio-circulatórias ou em isquemias focais. Os
maiores benefícios da prática de hipotermia são em relação aos neurônios que se
situam em áreas onde a lesão neuronal ainda pode ser revertida, portanto, em
áreas de penumbra (MICHLER e Colaboradores, 1995).
O metabolismo cerebral
diminuído com a hipotermia reduz o fluxo sanguíneo cerebral, em razão do
acoplamento metabólico, resultando em grande diminuição de volume do compartimento
intravascular cerebral, diminuindo a pressão intra-craniana, sendo este o
segundo efeito mais importante da prática da hipotermia.
Estenose ou oclusão
vascular, estado de choque, vasoespasmo, trauma neuronal e parada cardíaca
podem ter a hipóxia e isquemia cerebral como consequências secundárias. A morte
celular neuronal pode ser causada pela lesão isquêmica ou hipóxica e pode
ocorrer, principalmente, de duas maneiras: através da morte neuronal por
excitoxicidade (neste caso, a morte celular se dá, normalmente, em poucos
minutos, mas pode também ocorrer em até 15 dias após a injúria) e por apoptose,
também conhecida como morte celular tardia por ocorrer até depois de algumas
semanas do insulto. Não há formação de edema na morte celular por apoptose e
atinge especialmente os neurônios das áreas de penumbra, com possibilidade de
ser revertido o processo.
3.2 CIRURGIA CARDÍACA NORMOTÉRMICA VERSUS HIPOTÉRMICA
A cirurgia cardíaca
normotérmica foi introduzida em 1971, quando McGoon demonstrou que, sob
adequados fluxo de perfusão e oxigenação, a temperatura utilizada não parece
ser um elemento crítico (SALERNO, 2007).
Destaca-se
que atualmente a normotermia é utilizada nas mais diversas intervenções
cirúrgicas cardiovasculares, inclusive pediátricas (DURANDY, HULIN e LECOMPTE
(2006). Belli e colaboradores (2010) descreveram o tratamento cirúrgico em
normotermia de 21 pacientes com origem anômala da artéria coronária esquerda,
emergindo da artéria pulmonar, os quais apresentavam má função ventricular
esquerda com fração de ejeção menor que 15 %. A evolução pós-operatória foi boa
com uma sobrevivência de 95,2 %. Pouard e colaboradores (2006) realizaram um
estudo comparativo em neonatos operados com a técnica de Jatene para a
transposição de grandes artérias e reportou que aqueles submetidos às
intervenções com temperatura corporal normal apresentaram menores complicações,
tempo de ventilação mecânica e, ainda, menor tempo de estadia em terapia
intensiva e concentrações de troponina I, após 24 horas da cirurgia.
Cassano e Milella
(2007) encontraram resultados similares em 15 entre 19 pacientes com idades
entre 8 dias e 10 anos, sem que se evidenciassem danos neurológicos ou renais.
A duração da CEC é significativamente menor em normotermia, por não se investir
tempo nos processos de resfriamento e reaquecimento dos diferentes órgãos e
sistemas, e pela mais rápida recuperação da função contráctil miocárdica. Os
pacientes ficam menos expostos, portanto, aos efeitos adversos da hipotermia e
da própria derivação cardiopulmonar. Está demonstrado que a prolongação do
tempo de CEC aumenta a morbidade pós-operatória em todas as idades (BIRD e
Colaboradores, 1999).
Os valores médios do índice cardíaco
calculados pelo método de Fick são significativamente maiores na circulação
extra-corpórea normotérmica. A hipotermia não apenas induz efeitos adversos
sobre o miocárdio, a saber, edema celular, alteração da estabilidade das membranas
celulares, da entrega de oxigênio, seu consumo e a geração de energia; mas
também dificulta as funções metabólicas do glicogênio, assim como as
endócrinas, particularmente tireóideas, que têm um importante papel no índice
cardíaco. (DURANDY, 2010).
As razões que têm sido
esboçadas para explicar os melhores resultados em relação ao ácido láctico, a
SvO2 e o índice cardíaco, são consideradas válidas também para explicar a menor
necessidade de apoio hemodinâmico farmacológico sob condições de normotermia na
CEC. Em síntese, o menor dano tecidual e a fisiologia mais próxima do normal,
fazem com que outros autores relatem resultados coincidentes (CASSANO e
MILELLA, 2007).
A prática rotineira em
cirurgia cardíaca de reaquecer os pacientes submetidos à hipotermia antes que
saiam da circulação extra-corpórea, buscando evitar complicações em
consequência da hipotermia apresenta um alto risco, tendo em vista a
possibilidade de hipotermia não reconhecida, em razão da cânula aórtica ser
muito próxima ao cérebro, recomenda-se um gradiente entre cânula aórtica e
temperatura nasofaríngea menor ou igual a 2º C; e nunca um sangue em cânula
arterial superior a 38º C.
Segundo relatos de
Nathan e Colaboradores (2007), sua equipe submeteu dois grupos de pacientes à
cirurgia de revascularização do miocárdio, com CEC, sendo que mantiveram
durante o pré-operatório um grupo, formado por 73 pacientes, com temperatura de
34º C, recebendo reaquecimento antes de saírem da Circulação Extra-Corpórea. E
mantiveram o outro grupo, de 71 pacientes, com a mesma temperatura, porém sem
reaquecimento até chegarem à UTI. Segundo os pesquisadores, não foi encontrada
diferença significativa entre os dois grupos quanto à transfusão, uso de
inotrópicos, tempos de intubação, tempo de hospitalização, infarto do miocárdio
e mortalidade. Os pacientes hipotérmicos, no entanto, permaneceram menos tempo
na UTI (cerca de 8 horas a menos) e também apresentaram menos distúrbios
cognitivos, tendo sido observados até 3 meses após o procedimento.
Luz e
Auler Júnior (2002) em estudo experimental realizado para investigar sobre a
temperatura e as alterações no equilíbrio ácido-base de pacientes submetidos à
cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea, concluíram que a hipotermia
leve parece não modificar substancialmente o equilíbrio ácido-base, quando
comparado à normotermia durante a CEC. Porém, os pesquisadores verificaram que
o íon lactato teve uma elevação
significativa nos pacientes hipotérmicos, o que sugere, segundo eles,
que não houve adequado transporte de oxigênio para a periferia durante o
período de observação. A redução da temperatura, ainda que discreta, parece não
haver conseguido conferir o grau de proteção celular esperada ao fluxo
sangüíneo da CEC.
Defendendo a realização
de cirurgias cardíacas sob normotermia, Shure (2010) ressalta a existência de
um consenso de que não apenas o declínio
da temperatura e a parada cardiocirculatória em hipotermia profunda, mas também
o reaquecimento, a hiperglicemia e a hemodiluição representam um risco para o
estado neurológico dos pacientes, a curto e longo prazo, pois retardam a
aprendizagem e o desenvolvimento psicomotor.
É mencionado, ainda conforme Shure (2010) que
até 80 % da disfunção neuropsicológica pós-operatória se deve ao reaquecimento,
sobretudo se realizado rapidamente.
Ainda que a hipotermia
reduza o consumo O2 de 5 % a 7 % por cada grau Celsius que abaixa a temperatura
no cérebro, abaixo de 22 °C a 23 °C se perde o fluxo – metabolismo. Ao reduzir as demandas metabólicas, a hipotermia
ajuda a proteger as células neuronais, mas piora a regulação vasomotora e a
entrada de oxigênio cerebral, altera o metabolismo energético e aumenta a
pressão intracranial que induz dano celular após a reperfusão (PONCELET e
Colaboradores, 2011).
A reação inflamatória que
induz a CEC parece ser retardada pela hipotermia, mais do que se acreditava
anteriormente. A ativação da mesma é generalizada, são liberadas mais de 25
substâncias vasoativas que produzem alterações trombóticas, desequilíbrios
hidroeletrolíticos e efeitos múltiplos sobre a maioria dos órgãos do corpo
(BIRD e Colaboradores, 1999).
A reconstrução de arco
aórtico em pacientes com interrupção do mesmo ou coarctação da aorta com
hipoplasia do arco, realizada com derivação cardiopulmonar em normotermia, se
mostra factível e segura se for mantido um adequado fluxo de perfusão que
garanta uma pressão média de 40 mm Hg a 50 mm Hg na artéria radial direita.
(TOUATI, MARTICHO e FARRG, 2007).
A
perfusão em normotermia é mais simples de ser realizada, envolve menos
distúrbios metabólicos, evita as alterações do consumo de oxigênio e na produção de dióxido de carbono, ao contrário
da hipotermia e do reaquecimento; dispensa o debate entre as estratégias de
alpha-stat e pH stat, não deve modificar o hematócrito, já que não aumenta a
viscosidade sanguínea como na hipotermia, evita a hemodiluição, enquanto a
hemofiltração estaria dirigida apenas a eliminar mediadores inflamatórios
(DURANDY, 2010).
Cassano
y Milella (2007) publicaram sua experiência com 19 pacientes submetidos à
intervenção com CEC em normotermia, tendo sido utilizada como proteção miocárdica cardioplegia
cristalóide fria intermitente. Não foram evidenciados danos neurológicos ou
renais, conquanto no grupo de normotermia houve menor tempo de ventilação
mecânica e de cuidados intensivos, assim como diminuição no uso, dose e tempo
de infusão de fármacos inotrópicos e vasodilatadores; além disso, evidenciou-se
uma redução do sangramento em relação à hipotermia.
Ly e Colaboradores
(2011), em uma revisão retrospectiva de 110 cirurgias para a reconstrução do
arco aórtico em pacientes pediátricos, com perfusão cerebral contínua em
normotermia e hipotermia, concluiu que a
parada cardíaca pode ser evitada e que a normotermia é factível e
segura, sem efeitos adversos a longo prazo. Alva,
Carbonel e Palomeque (2009) concluíram que a derivação cardiopulmonar
normotérmica está associada com menos estresse oxidativo que a hipotérmica,
além de mostrar níveis menores da citocina antiinflamatória IL - 10 que no
grupo submetido à hipotermia.
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
utilização de hipotermia em cirurgia cardíaca com CEC, embora uma prática
médica recorrente, tem sido responsável por diversos efeitos deletérios,
ressaltando-se que o reaquecimento, provocando hipertermia no momento da saída
de CEC, é de extremo risco, com possibilidade de comprometer o resultado
neurológico do pacientes.
À guisa de conclusão,
baseados nos fundamentos teóricos encontrados, parece ser recomendável a
cirurgia em normotermia como boa alternativa, segura, factível e capaz de
proteger os diferentes órgãos de forma eficaz.
Assim, este estudo, que
não teve a pretensão de esgotar o tema, sugere que novas pesquisas sejam
realizadas, a fim de se comprovar a eficácia e segurança da cirurgia cardíaca
em CEC sob normotermia.
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